quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

No limbo . Natasha

O limbo sempre foi meu lugar. 

Minha casa, 

foi construída nele. 

Minhas asas também. 

Meu ato de criar, 

de me recriar, 

de me renascer e ser, 

limbica. 

Eterna bailarina da linha tênue. 

Nascida do caos. 

 

E mal parida, 

já nadava contra a corrente. 

Dejeto de ondinas, 

alma de sereia, 

ou de serei? 

Ou de será? 

 

Quem tudo vê. 

Tudo dança, 

mas tantas vezes se cansa, 

de ver sozinha. 

E volta pra casa, 

retira a asa, 

enrrola a linha tênue num novelo e limba. 

 

Se limba. 

Eu limbo, t

u limbas? 

Ele não limba. 

Vois não limbais, 

eles não limbam. 

E nós?

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

O menino que carregava água na peneira . Manoel de Barros

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Se eu fosse Deus seria a vida um sonho . Martins Fontes

Se eu fosse Deus seria a vida um sonho, 

nossa existência um júbilo perene! 

Nenhum pensar que o espírito envenene 

empanaria a luz do céu risonho! 

 

Não haveria mais: o adeus solene, 

a vingança, a maldade, o ódio medonho 

e o maior mal, que a todos anteponho, 

a sede, a fome da cobiça infrene! 

 

Eu exterminaria a enfermidade, 

todas as dores da senilidade, 

e os pecados mortais seriam dez… 

 

A criação inteira alteraria, 

porém, se eu fosse Deus, te deixaria 

exactamente a mesma que tu és!

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

I lied . Brittin Oakman

 

I lied when said I was busy.
I was busy;
but not in a way most people understand.

I was busy taking deeper breaths.
I was busy silencing irrational thoughts.
I was busy calming a racing heart.
I was busy telling myself I am okay.

Sometimes, this is my busy -
and I will not apologize for it.

Constelação . Sónia Balacó


 

quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Immortality . Clare Harner

 Do not stand
   By my grave, and weep,
I am not there,
   I do not sleep--

I am the thousand winds that blow,
I am the diamond glints in snow.
I am the sunlight on ripened grain,
I am the gentle, autumn rain.
As you awake with morning's hush,
I am the swift, up-flinging rush
Of quiet birds in circling flight.
I am the day transcending night.

Do not stand
   By my grave, and cry--
I am not there,
I did not die.

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

À quinta-feira . Filipa Leal

 

"Perdoa-me se continuo a fazer
pouca ginástica, se continuo a fazer
coisas como poemas de amor.
Enquanto tu, de mãos no volante,
continuas a entrar na minha rua
em sentido contrário."

Pedra Filosofal . António Gedeão

 

Eles não sabem que o sonhoÉ uma constante da vidaTão concreta e definidaComo outra coisa qualquer
 
Como esta pedra cinzentaEm que me sento e descansoComo este ribeiro mansoEm serenos sobressaltos
 
Como estes pinheiros altosQue em verde e oiro se agitamComo estas aves que gritamEm bebedeiras de azul
 
Eles não sabem que o sonhoÉ vinho, é espuma, é fermentoBichinho a lacre e sedentoDe focinho pontiagudoNo perpétuo movimento
 
Eles não sabem que o sonhoÉ tela, é cor, é pincelBase, fuste ou capitelArco em ogiva, vitral,Pináculo de catedral,Contraponto, sinfonia,Máscara grega, magia,Que é retorta de alquimista
 
Mapa do mundo distanteRosa dos ventos, infanteCaravela quinhentistaQue é cabo da boa esperança
 
Ouro, canela, marfimFlorete de espadachimBastidor, passo de dançaColumbina e arlequim
 
Passarola voadoraPara-raios, locomotivaBarco de proa festivaAlto forno, geradora
 
Cisão do átomo, radarUltrassom, televisãoDesembarque em foguetãoNa superfície lunar
 
Eles não sabem nem sonhamQue o sonho comanda a vidaE que sempre que o homem sonhaO mundo pula e avançaComo bola coloridaEntre as mãos de uma criança(La la la ra la ra ra )

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Like a bridge over troubled water . Paul Simon

 When you're weary
Feeling small
When tears are in your eyes
I will dry them all

I'm on your side
When times get rough
And friends just can't be found
Like a bridge over troubled water
I will lay me down
Like a bridge over troubled water
I will lay me down

When you're down and out
When you're on the street
When evening falls so hard
I will comfort you

I'll take your part
When darkness comes
And pain is all around
Like a bridge over troubled water
I will lay me down
Like a bridge over troubled water
I will lay me down

Sail on, silver girl
Sail on by
Your time has come to shine
All your dreams are on their way

See how they shine
If you need a friend
I'm sailing right behind
Like a bridge over troubled water
I will ease your mind
Like a bridge over troubled water
I will ease your mind

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Mutual Friends . Divine Comedy

 

No matter how I tryI just can't get her out of my mindAnd I when I sleep I visualize her
 
I saw her in the pubI met her later at the nightclubA mutual friend introduced usWe talked about the noiseAnd how its hard to hear your own voice
 
Above the beat and the sub-bassWe talked and talked for hoursWe talked in the back of our friend's carAs we all went back to his place
 
On our friend's setteeShe told me that she really liked meAnd I said, "Cool, the feeling's mutual"We played old 45'sAnd said it's like the soundtrack to our lives
 
And she said, "True, it's not unusual"Then privately we dancedWe couldn't seem to keep our balanceA drunken haze had come upon us
 
We sank down to the floorAnd we sang a song that I can't sing anymoreAnd then we kissed and fell unconscious
 
I woke up the next day, all alone but for a headacheI stumbled out to find the bathroomBut all I found was her, wrapped around another loverNo longer then is he our mutual friend

Setembro . Rui de Noronha Ozório

 

A noite está serena e viva
tem corpo de terra molhada
que se inspira
árvore ramo folha de chuva
O silêncio da água o riacho
que não dorme
e a rouquidão das cigarras a vestir
a madrugada de poemas
Ah! e um cão sim
um cão que ladra na escuridão
sem motivo aparente
como se falasse ao mundo
a pedir quem sabe
...companhia
uma festa um olhar um cigarro
ou até porque não
poesia

Alguns gostam de Poesia . Wisława Szymborska

 

Alguns gostam de poesia
Alguns -
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.
 
Gostam -
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.
 
De poesia -
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Entrei no café com um rio na algibeira . José Gomes Ferreira


 

Poesia III . José Gomes Ferreira



 

Quero voar . José Gomes Ferreira


 

Nalgum lugar em que eu nunca estive . Edward Estlin Cummings

nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas!

Capitão Romance . Ornatos Violeta . Manel Cruz

Não vou procurar quem espero
Se o que eu quero é navegar
Pelo tamanho das ondas
Conto não voltar


Parto rumo à primavera
Que em meu fundo se escondeu
Esqueço tudo do que eu sou capaz
Hoje o mar sou eu


Esperam-me ondas que persistem
Nunca param de bater
Esperam-me homens que resistem
Antes de morrer


Por querer mais do que a vida
Sou a sombra do que eu sou
E ao fim não toquei em nada
Do que em mim tocou

Eu vi
Mas não agarrei

Parto rumo à maravilha
Rumo à dor que houver pra vir
Se eu encontrar uma ilha
Paro pra sentir
E dar sentido à viagem
Pra sentir que eu sou capaz
Se o meu peito diz coragem
Volto a partir em paz

Eu vi
Mas não agarrei

Insónia . Quim Barreiros

 

Tua mulher não dorme mais, passa a noite acordadaTem noite que dá uma, tem noite que dá duasTem noite que dá três, horas da madrugada
 
Sua doença, ninguém vai descobrirEnquanto não dá uma, não consegue dormirEsta semana, sabes o que ela fez?Deitou-se depois das duasSó dormiu quando deu três
 
_______
 
Your wife doesn't sleep anymore, she stays up all night
Some nights it's one, some nights it's two
There are nights that goes three, hours in the morning
 
Her disease, nobody's gonna find out
While she's not getting any, she can't sleep
This week, do you know what she did?
She went to bed after two
But she didn't sleep until three

Visitas . Octávio Paz

 



Através da noite urbana de pedra e seca
o campo entra no meu quarto.
Estende braços verdes com pulseiras de pássaros,
com fivelas de folhas.
Leva um rio à mão.

O céu do campo também entra,
com o seu cesto de jóias acabadas de cortar.
E o mar senta-se ao meu lado,
estende a sua cauda branquíssima no solo.
No silêncio brota uma árvore de música.

Na árvore pendem todas as palavras formosas
que brilham, amadurecem e caem.
Na minha testa, uma caverna onde mora um relâmpago...

Porém, tudo se povoou com asas.
Diz-me: é deveras o campo que vem de tão longe,
ou és tu, são os sonhos que sonhas ao meu lado?

Leia mais: https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=264463 © Luso-Poemas
Através da noite urbana de pedra e seca
o campo entra no meu quarto.
Estende braços verdes com pulseiras de pássaros,
com fivelas de folhas.
Leva um rio à mão.

O céu do campo também entra,
com o seu cesto de jóias acabadas de cortar.
E o mar senta-se ao meu lado,
estende a sua cauda branquíssima no solo.
No silêncio brota uma árvore de música.

Na árvore pendem todas as palavras formosas
que brilham, amadurecem e caem.
Na minha testa, uma caverna onde mora um relâmpago...

Porém, tudo se povoou com asas.
Diz-me: é deveras o campo que vem de tão longe,
ou és tu, são os sonhos que sonhas ao meu lado?

Leia mais: https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=264463 © Luso-Poemas
Através da noite urbana de pedra e seca
o campo entra no meu quarto.
Estende braços verdes com pulseiras de pássaros,
com fivelas de folhas.
Leva um rio à mão.

O céu do campo também entra,
com o seu cesto de jóias acabadas de cortar.
E o mar senta-se ao meu lado,
estende a sua cauda branquíssima no solo.
No silêncio brota uma árvore de música.

Na árvore pendem todas as palavras formosas
que brilham, amadurecem e caem.
Na minha testa, uma caverna onde mora um relâmpago...

Porém, tudo se povoou com asas.
Diz-me: é deveras o campo que vem de tão longe,
ou és tu, são os sonhos que sonhas ao meu lado?

Leia mais: https://www.luso-poemas.net/modules/news/article.php?storyid=264463 © Luso-Poemas

Análise . Fernando Pessoa

 

Tão abstracta é a ideia do teu ser

Que me vem de te olhar, que, ao entreter

Os meus olhos nos teus, perco‑os de vista,

E nada fica em meu olhar, e dista

Teu corpo do meu ver tão longemente,

E a ideia do teu ser fica tão rente

Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me

Sabendo que tu és, que, só por ter‑me

Consciente de ti, nem a mim sinto.

E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto

A ilusão da sensação, e sonho,

Não te vendo, nem vendo, nem sabendo

Que te vejo, ou sequer que sou, risonho

Do interior crepúsculo tristonho

Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.

        Do sonho e pouco da vida.

Kit de sobreviência . Raquel Serejo Martins

 Comprei um pente para, 

quando eu não estou, 

tu próprio te despenteares 

e um livro de poemas tristes 

e um disco de canções tristes, 

uma chaleira e um bule, 

um stock de saquinhos de chá 

suficiente para atravessar o Inverno, 

para hibernar, chegar ao Verão, 

um bloco de póstitos amarelos 

para as notas importantes 

e um lenço de mão, 

não de linho mas 100% algodão, 

com o um coração a ponto cheio bordado. 

O mais difícil foi comprar um lenço assim, 

quase não há bordadeiras, 

mas queria um coração, 

a metáfora do meu coração, 

no teu bolso, 

nas tuas mãos, 

para secares os olhos, 

para assoares o nariz.

Código Postal . João Negreiros

 

As paredes desta casa já viram tudo
o sono
a fome

e um tambor perdido no meio da batalha

viram inquilinos fugir à pressa  e a treva que os ladrões

                                                                 trouxeram

as bulhas que desaguaram em carícias

as portas que bateram por conta do vento  e as janelas que

                                              partiram por conta de nada
mas cada vez que um vinha e entrava  dava a todos esta
morada
e o correio trazia para o mesmo destinatário as cartas de amor
de quem já não mora aqui
e eu não quero saber

abro-as e leio-as como se fossem minhas  como se fossem tuas e violo-lhes a correspondência como se fosses tu

esqueço a letra e os erros de ortografia e imagino que me  
escreves todos os dias
e quando perguntam se mora aqui a dona augusta

eu digo que sim   que sou eu

 

e o senhor Gustavo?

 

sim  sou eu

 

o doutor Américo?

 

é o meu pai

 

a dona Lourdes?

 

é a minha mãe

 

a Maria de Fátima?

 

é minha filha

 

e o correio não faz perguntas porque sabe que não se deve
perguntar nada a um homem apaixonado
e então faço de conta que os nomes sou eu

tapo o remetente  imagino-te o nome  e abro-a para sentir o     
teu perfume
e a carta começa assim

excelentíssimo senhor  e eu traduzo para  meu querido

e depois continua com

venho por este meio  e eu traduzo para  amo-te mais que a
vida

 

e a carta do tribunal com aviso de recepção do homem que    
morava aqui e que não pagava a renda é
a prova inequívoca de que me amas

todo aquele papaguear jurídico são longas descrições do país
exótico onde vives exilada

 

é por isso que não podes vir

é por isso que não podes escrever  não te deixam

por isso escreves em código na pena dos que partiram

com cartas de tribunal e contas da luz antigas para me alumiar
a esperança pedindo-me que espere

 

e sempre que o telefone toca e é engano  és tu

quando o galho comprido da árvore do vizinho bate na janela
és tu

quando buzinam na rua   és tu

quando as crianças cantam lá fora  é para te anunciar

 

eu sei não tardas estás para chegar

e quando chegares vais pedir desculpa pelo atraso

e vais dizer que fomos feitos um para o outro  e que a vida
agora vai correr bem

 

e vais ser linda   e dar-me beijos quentes como um abafo para

                                                                           as orelhas
e vamos viver nesta casa um perpétuo amor  uma vida perfeita sem nada que nos interrompa

 

e quando o carteiro chegar e fizer perguntas
dizemos que a dona Augusta não sou eu
dizemos que o senhor Gustavo não sou eu
que o doutor Américo era o meu pai mas morreu

que a dona Lourdes era minha mãe mas também se foi logo a
seguir com o desgosto

que a Maria de Fátima  a minha pequenina de um casamento
antigo foi com a mãe para a Suíça

e que aqui moramos nós

sem história

sem família

sem passado

nesta paz que não existe

neste amor que nunca foi  

mas que é para sempre

 

Horário de saída . Raquel Serejo Martins

 Saio às seis 

e podias fazer-me uma surpresa, 

não um ramo de flores 

mas o teu sorriso à porta, 

tu do outro lado da rua, 

tu, sem gravata, sem embrulho, 

o meu presente. 

Depois, a dois, maybe a tea for two, 

maybe tea with blueberry scones, 

ou podíamos descer a avenida, 

ver o Outono nas árvores, 

as montras das livrarias, 

animais em extinção nas livrarias, 

ficar indecisos em frente ao cinema, 

se pelo menos fosse um filme francês, 

passear junto ao rio entre 

turistas coloridos e coloridos desportistas, 

beber uma cerveja, comer amendoins, 

contavas aquela anedota com amendoins que me faz 

sempre rir, 

depois contavas as tuas discussões em casa, 

eu contava as minhas discussões em casa, 

e voltávamos a rir, 

conseguíamos rir das mesmas coisas que antes nos deixaram tristes, 

enquanto nos tocávamos com carinho, 

arrumávamos um ao outro uma madeixa de cabelo 

que não precisava ser arrumada 

só pelo prazer dos gestos, 

enquanto os meus olhos nos teus olhos cor de ameixa, 

talvez entrássemos no nosso hotel, 

tem a Alcachofra do Poul Henningsen, 

os dois sabíamos o nome do candeeiro, 

tem um não sei quê de avestruz, 

os dois gostamos de candeeiros, 

de tecto, de pé, de mesa, 

somos esquisitos no que toca a luz. 

Talvez entrássemos no nosso hotel 

e não para fazer sexo com amor, 

para fazer amor com sexo, 

mas para, vestidos, provavelmente descalços, 

os dois ridículos de meias, 

meias às riscas, quase aposto, 

somos esquisitos no que toca a meias, 

lado a lado, deitados na cama, 

de olhos no Alcachofra do tecto, 

de mãos dadas, chorarmos sem ninguém mais nos ver.

Almas perfumadas . Carlos Drummond de Andrade

 Tem gente que tem cheiro de passarinho quando canta.
De sol quando acorda.
De flor quando ri.
Ao lado delas, a gente se sente
no balanço de uma rede que dança gostoso
numa tarde grande, sem relógio e sem agenda.
Ao lado delas, a gente se sente
comendo pipoca na praça.
Lambuzando o queixo de sorvete.
Melando os dedos com algodão doce
da cor mais doce que tem pra escolher.
O tempo é outro.
E a vida fica com a cara que ela tem de verdade,
mas que a gente desaprende de ver.
Tem gente que tem cheiro de colo de Deus.
De banho de mar quando a água é quente e o céu é azul.
Ao lado delas, a gente sabe
que os anjos existem e que alguns são invisíveis.
Ao lado delas, a gente se sente
chegando em casa e trocando o salto pelo chinelo.
Sonhando a maior tolice do mundo
com o gozo de quem não liga pra isso.
Ao lado delas, pode ser abril,
mas parece manhã de Natal
do tempo em que a gente acordava e encontrava
o presente do Papai Noel.
Tem gente que tem cheiro das estrelas
que Deus acendeu no céu e daquelas que conseguimos
acender na Terra.
Ao lado delas, a gente não acha
que o amor é possível, a gente tem certeza.
Ao lado delas, a gente se sente visitando
um lugar feito de alegria.
Recebendo um buquê de carinhos.
Abraçando um filhote de urso panda.
Tocando com os olhos os olhos da paz.
Ao lado delas, saboreamos a delícia
do toque suave que sua presença sopra no nosso coração.
Tem gente que tem cheiro de cafuné sem pressa.
Do brinquedo que a gente não largava.
Do acalanto que o silêncio canta.
De passeio no jardim.
Ao lado delas, a gente percebe
que a sensualidade é um perfume
que vem de dentro e que a atração
que realmente nos move não passa só pelo corpo.
Corre em outras veias.
Pulsa em outro lugar.
Ao lado delas, a gente lembra
que no instante em que rimos Deus está conosco,
juntinho ao nosso lado.
E a gente ri grande que nem menino arteiro.
Tem gente como você que nem percebe
como tem a alma Perfumada!
E que esse perfume é dom de Deus.

Pimba, pimba . Emanuel

 

Rapazes da vigairadaOiçam bem com atençãoTodos temos o deverDe dar às nossas mulheresMuito carinho e afeição
 
São as mais lindas do mundoDonas do nosso coraçãoSe somos meigos pra elasDa nos tudo tudo tudoCom toda a dedicação
 
E se elas querem umAbraço ou um beijinhoNós pimba nós pimbaE se elas querem muitoAmor muito carinhoNós pimba nós pimbaE se elas querem umEncosto à maneiraNós pimba nós pimbaE se elas querem àNoitinha brincadeiraNós pimba nós pimba
 
Elas são tudo pra nósE não me digam que nãoTemos de lhes dar amorNunca nunca as deixar sósE consolar seu coração
 
Quando estão apaixonadasSão-nos muito dedicadasPor isso rapaziadaConvém que elas sintamQue por nós são muito amadas
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Não venhas tarde . Carlos Ramos

 

Não venhas tardeDizes-me tu com carinhoSem nunca fazer alardeDo que me pedes, baixinho
 
Não venhas tardeE eu peço a Deus que no fimTeu coração ainda guardeUm pouco de amor por mim
 
Tu sabes bemQue eu vou pra outra mulherQue ela me prende tambémQue eu só faço o que ela quer
 
Tu estás sentindoQue te minto e sou cobardeMas sabes dizer, sorrindoMeu amor, não venhas tarde
 
Não venhas tardeDizes-me sem azedumeQuando o teu coração ardeNa fogueira do ciúme
 
Não venhas tardeDizes-me tu da janelaE eu venho sempre mais tardePorque não sei fugir dela
 
Sem alegriaEu confesso, tenho medoQue tu me digas um diaMeu amor, não venhas cedo
 
Por ironiaPois nunca sei onde vaisQue eu chegue cedo algum diaE seja tarde demais

My Imaginary Friend . Divine Comedy

Would you like to meet my little friend?
Don't try to shake his hand, he's just pretend
His name is Benjamin, that's his name
My mama says, "You're insane
Boy, you really are the end
You and your imaginary friend"

Daddy drives the mobile library
He works peripatetically, that's right
He doesn't get much time to play with us
So we just read and make up stuff
And it drives him round the bend
Me and my imaginary friend

M Y I M A G I N A R Y F R I E N D

One day we're gonna play hide and seek
And Ben will be up the creek
Never to be seen again
He'll disappear the day that childhood ends
And reality descends
I'll never forget you my imaginary friend

A lucidez perigosa . Clarice Lispector

 Estou sentindo uma clareza tão grande 

que me anula como pessoa atual e comum: 

é uma lucidez vazia, como explicar? 

assim como um cálculo matemático perfeito 

do qual, no entanto, não se precise.

 

Estou por assim dizer 

vendo claramente o vazio. 

E nem entendo aquilo que entendo: 

pois estou infinitamente maior que eu mesma, 

e não me alcanço. 

Além do que: 

que faço dessa lucidez?

-----------

Sei também que esta minha lucidez 

pode-se tornar o inferno humano 

- já me aconteceu antes.


Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade -
essa clareza de realidade
é um risco.

 

 

 

Espectáculo . Sérgio Godinho

 

Quando tu me vires no futebolEstarei no campo, cabeça ao solA avançar pé ante péPara uma bola que está à espera de um pontapéÀ espera de um penaltyQue eu vou transformar para ti
 
Eu vou atirar para ganharVou rematar e o golo que eu fizerFicará sempre na redeA libertar-nos da sedeFicará sempre na redeA libertar-nos da sede
 
Não me olhes só da bancada lateralDesce-me essa escada e vem deitar-te na gramaVem falar comigo como gente que se amaAté não se poder mais, vamos jogar
 
Quando tu me vires no music-hallEstarei no palco, cabeça ao solAo sol da noite das luzes à espera dum outro solE que os teus olhos os uses como quem usa um farol
 
Não me olhes só dessa frisa lateralDesce p'a cortina e acompanha-me em cenaVamos dar à perna como gente que se amaAté não se poder mais, vamos bailar
 
E quando tu me vires na televisão (quando!0Estarei no écran, pés assentes no chãoA fazer publicidadeMas desta vez da verdadeMas desta vez da alegriaDe duas mãos agarradasMão a mão, dia a dia
 
Não me olhes só desse maple estofadoDesce pela antena, vem comigo ao programaVem falar à gente como gente que se amaAté não se poder mais, vamos cantar
 
E quando à minha casa fores darVem devagar e apaga-me a luz (devagar)
 Que a luz dest'outra ribalta às vezes não me seduz (não seduz)
Às vezes não me faz falta às vezes não me seduz (não faz falta, não seduz)Às vezes não me faz falta às vezes não me seduz (não faz falta, não seduz)Às vezes não me faz falta às vezes não me seduz (não faz falta, não seduz)às vezes não me...

Protocolo . Anderson Antonangelo

peguei o teu último beijo 

que me deste enquanto partias 

corri logo até o cartório 

e o registrei em quatro vias 

um beijo tão doloroso que 

carregava o nosso passado 

com a firma reconhecida 

era, então, beijo protocolado 

tirei cópias autenticadas 

e plastifiquei o meu ofício 

guardei-o na gaveta mais funda 

para durar, ali, vitalício 

 

com o tempo, ali, no escuro 

o beijo foi perdendo suas cores 

virou vaga, distante lembrança 

dos beijos todos anteriores 

apagou-se, por fim, por completo 

dos papéis e do meu pensamento 

já não tenho a ti, nem teu beijo 

nem identidade, nem documento

De cor . João Negreiros

 Nunca digo à minha mãe que a amo porque sei que ela sabe, mas como sei que ela gosta de ouvir digo à mesma como se não soubesse.

O amor só se sabe quando se tem a certeza e para se ter a certeza é preciso dizê-lo e repeti-lo muitas vezes até se saber de cor.

O amor só sabe bem quando se sabe de cor. Decorei isto para ti, mãe… espero que gostes. 

 

Probleminha de física . Anderson Antonangelo

 numa superfície lisa sem atrito 

de uma sala de aula nas CNTP e 

sob gravidade arredondada de 10 m/s² 

um professor, sem resistência do ar, 

pede que se calcule, em coulombs, a 

carga de uma secção reta do condutor 

considerando-se que o gerador é ideal 

e a corrente elétrica constante 

 

numa outra sala qualquer 

reafirmam incisivamente 

que o poeta é um fingidor 

e que o amor é platônico

oração sobre sentimentos essenciais . Bênção Nahuatl


Eu liberto meus pais do sentimento de que já falharam comigo.

Eu liberto meus filhos da necessidade de trazerem orgulho para mim. Que possam escrever seus próprios caminhos de acordo com seus corações, que sussurram o tempo todo em seus ouvidos.

Eu liberto meu parceiro da obrigação de me completar. Não me falta nada, aprendo com todos os seres o tempo todo.

Agradeço aos meus avós e antepassados, que se reuniram para que hoje eu respire a vida. Libero-os das falhas do passado e dos desejos que não cumpriram, consciente de que fizeram o melhor que puderam para resolver suas situações dentro da consciência que tinham naquele momento. Eu os honro, os amo e os reconheço inocentes.

Eu me desnudo diante de seus olhos. Por isso, eles sabem que eu não escondo nem devo nada além de ser fiel a mim mesmo e à minha própria existência, que caminhando com a sabedoria do coração, estou ciente de que cumpro o meu projeto de vida, livre de lealdades familiares invisíveis e visíveis que possam perturbar minha Paz e Felicidade, que são minhas únicas responsabilidades.

Eu renuncio ao papel de salvador, de ser aquele que une ou cumpre as expectativas dos outros.

Aprendendo por meio e somente por meio do AMOR, eu abençoo minha essência, minha maneira de expressar, mesmo que alguém possa não me entender.

Eu entendo a mim mesmo, porque só eu vivi e experimentei minha história. Porque me conheço, sei quem sou, o que sinto, o que faço e por quê faço.

Eu me respeito e me aprovo.

Eu honro a Divindade em mim e em você.

Somos livres!

*Dizem que essa antiga bênção foi criada no idioma Nahuatl, falado desde o século VII na região central do México. Ela trata de perdão, carinho, desapego e libertação.

 

Um tempo que passou . Chico Buarque e Sérgio Godinho

 

VouUma vez maisCorrer atrásDe todo o meu tempo perdidoQuem sabe, está guardadoNum relógio escondido por quemNem avalia o tempo que tem
 
OuAlguém o achouExaminouJulgou um tempo sem sentidoQuem sabe, foi usadoE está arrependido o ladrãoQue andou vivendo com meu quinhão
 
Ou dorme num arquivoUm pedaço de vidaA vida, a vida que eu não gozeiEu não respireiEu não existia
 
Mas eu estava vivoVivo, vivoO tempo escorreuO tempo era meuE apenas queriaHaver de voltaCada minuto que passou sem mim
 
SimEncontro enfimIguais a mimOutras pessoas aturdidasDescubro que são muitasAs horas dessas vidas que estãoTalvez postas em grande leilão
 
SãoMais de um milhãoUma legiãoUm carrilhão de horas vivasQuem sabe, dobram juntasAs dores coletivas, quiçáNo canto mais pungente que há
 
Ou dançam numa torreAs nossas sobrevidasVidas, vidasA se encantarA se combinarEm vidas futuras
 
Enquanto o vinho corre, corre, correMorrem de rirMas morrem de rirNaquelas alturasPois sabem que não volta jamaisUm tempo que passou