quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Código Postal . João Negreiros

 

As paredes desta casa já viram tudo
o sono
a fome

e um tambor perdido no meio da batalha

viram inquilinos fugir à pressa  e a treva que os ladrões

                                                                 trouxeram

as bulhas que desaguaram em carícias

as portas que bateram por conta do vento  e as janelas que

                                              partiram por conta de nada
mas cada vez que um vinha e entrava  dava a todos esta
morada
e o correio trazia para o mesmo destinatário as cartas de amor
de quem já não mora aqui
e eu não quero saber

abro-as e leio-as como se fossem minhas  como se fossem tuas e violo-lhes a correspondência como se fosses tu

esqueço a letra e os erros de ortografia e imagino que me  
escreves todos os dias
e quando perguntam se mora aqui a dona augusta

eu digo que sim   que sou eu

 

e o senhor Gustavo?

 

sim  sou eu

 

o doutor Américo?

 

é o meu pai

 

a dona Lourdes?

 

é a minha mãe

 

a Maria de Fátima?

 

é minha filha

 

e o correio não faz perguntas porque sabe que não se deve
perguntar nada a um homem apaixonado
e então faço de conta que os nomes sou eu

tapo o remetente  imagino-te o nome  e abro-a para sentir o     
teu perfume
e a carta começa assim

excelentíssimo senhor  e eu traduzo para  meu querido

e depois continua com

venho por este meio  e eu traduzo para  amo-te mais que a
vida

 

e a carta do tribunal com aviso de recepção do homem que    
morava aqui e que não pagava a renda é
a prova inequívoca de que me amas

todo aquele papaguear jurídico são longas descrições do país
exótico onde vives exilada

 

é por isso que não podes vir

é por isso que não podes escrever  não te deixam

por isso escreves em código na pena dos que partiram

com cartas de tribunal e contas da luz antigas para me alumiar
a esperança pedindo-me que espere

 

e sempre que o telefone toca e é engano  és tu

quando o galho comprido da árvore do vizinho bate na janela
és tu

quando buzinam na rua   és tu

quando as crianças cantam lá fora  é para te anunciar

 

eu sei não tardas estás para chegar

e quando chegares vais pedir desculpa pelo atraso

e vais dizer que fomos feitos um para o outro  e que a vida
agora vai correr bem

 

e vais ser linda   e dar-me beijos quentes como um abafo para

                                                                           as orelhas
e vamos viver nesta casa um perpétuo amor  uma vida perfeita sem nada que nos interrompa

 

e quando o carteiro chegar e fizer perguntas
dizemos que a dona Augusta não sou eu
dizemos que o senhor Gustavo não sou eu
que o doutor Américo era o meu pai mas morreu

que a dona Lourdes era minha mãe mas também se foi logo a
seguir com o desgosto

que a Maria de Fátima  a minha pequenina de um casamento
antigo foi com a mãe para a Suíça

e que aqui moramos nós

sem história

sem família

sem passado

nesta paz que não existe

neste amor que nunca foi  

mas que é para sempre

 

Sem comentários:

Enviar um comentário